Olá,
Naqueles habituais balanços de fim de ano apercebi-me de que fui muito poucas vezes ao teatro em 2023, agravando-se a situação pelo facto de ser uma tendência já vinda de 2020. Como em muitas outras coisas, também o volume de ida a espetáculos foi muito marcado pela pandemia e é engraçado como a barreira de 2020 é utilizada para quase tudo o que deixámos de fazer, mesmo que muitas vezes o seja de forma errada. Ainda no outro dia comentava com uma amiga de muito longa data que não nos víamos, certamente, desde 2020, porque entretanto durante um ano e tal (pós-pandemia) a vida não aconteceu e eu desde aí que não me lembro de a ter visto, portanto só podia ser desde aquela altura. Acontece que, feitas as contas, a verdade é que não estávamos juntos desde o início de 2018 e a distância nada teve a ver com a Covid. Acredito que seja mais reconfortante pensarmos todos que só em 2020 – e por questões alheias à nossa vontade, claro – é que deixámos de fazer certas coisas. Enquanto o cérebro acreditar nisso, tudo bem.
Mas sim, concertos, idas ao cinema e ao teatro foram completamente interrompidas e o regresso é sempre custoso porque somos animais de rotinas e, se uma se quebra, dificilmente volta. Portanto, feita a assunção da falha, restava-me procurar uma peça que parecesse interessante e comprar bilhete para ir vê-la. Acabei por escolher A hora em que não sabíamos nada uns dos outros, peça muda escrita pelo nobel Peter Handke e com direção de Olga Roriz.
Na semana passada lá fui, entusiasmado, ao Teatro Nacional São João. Fui bastante cedo, ainda a tempo de jantar uns cachorrinhos no Gazela, um dos últimos bastiões da cidade que ainda se encontram minimamente equilibrados na balança social, onde de um lado está o caráter tradicional e do outro o valor turístico. Cada vez se pende mais para este segundo, infelizmente. Como estava bastante folgado de tempo, deixei-me ficar ao balcão mesmo depois de já ter terminado a refeição. Ao meu lado esquerdo, nos últimos lugares até à janela, estavam dois miúdos com uns 15 anos, um deles com um inglês britânico perfeito e o outro claramente português e que ia fazendo a mediação entre o amigo e os funcionários. Para além do sempre divertido passatempo que é ver a reação de um estrangeiro quando vê e depois quando prova um prato típico português – no verão vi um casal a experimentar fígado porque era prato do dia num tasco e o funcionário falava zero inglês, foi bonito de se ver – também fiquei atento à conversa. Falavam da experiência de cada um com dinheiro dado pelos pais. O inglês dizia que desde que entrou na escola (suponho que aos 6 anos) que recebe semanada dos pais e que, entretanto, ela até foi crescendo com o passar dos anos. O português respondeu que nunca foi instituída a mesada na família, mas que os pais estavam sempre dispostos a dar-lhe dinheiro para o que precisasse, para a escola ou fora dela. Pareceram-me claramente dois jovens que não precisam de se preocupar muito com dinheiro, porque ele há de chegar, de uma forma ou de outra.
As saudades de ir ao teatro e ao Gazela são reais, tudo o resto foi inventado, peço desculpa. Até estava lançado para continuar a narrativa e passar para uma extrapolação das diferenças culturais entre os latinos e os anglo-saxónicos e a relação que cada um tem com o dinheiro, mas não quero levar ninguém ao engano e parei aqui. É só porque isto afigurou-se-me como uma melhor opção, ao invés de começar este texto diretamente pela verdade, até porque não me lembro bem como me surgiu este pensamento, talvez tenha sido ao acordar, como de costume. Mas para resumir a premissa: tenho saudades de quando tudo o que precisávamos de saber, financeiramente falado, se resumia à gestão de uma mesada. Que, em si, e mais do ponto de vista de quem a dá, já é bem mais complexa do que parece, pelas muitas variáveis implicadas:
se faz mais sentido mesada ou semana, ou nenhuma delas, dando à medida das necessidades da criança,
que valor dar,
qual a variação desse valor ao longo do tempo,
que bens é que faz sentido poderem ser comprados por essa mesada, se só os mais básicos, como a alimentação na escola e pequenos snacks de supermercado, se algo que envolva lazer, como idas ao cinema ou saídas à noite, ou até algo mais estrutural que considere uma poupança futura, sendo que cada opção tem impacto no valor dado,
mais, se esse valor fixo de mesada poderá ser complementado com pagamentos em troca de tarefas domésticas,
se é mais educativo dar em numerário ou em cartão,
e, muito importante, como preparar uma criança para o facto de ter amigos que recebem mais, ou menos, ou até nada.
Ou seja, é uma decisão aparentemente simples, mas que tem um sem-número de fatores agregados que faz dela algo em que se deva pensar durante algum tempo. E, pelo que li sobre o tema, como este artigo, a resolução está longe de ser consensual, mesmo entre a comunidade de psicólogos.
Mas, estava eu a dizer, houve um tempo nas nossas vidas em que isto era tudo o que conhecíamos acerca de dinheiro e da gestão que deveria dele ser feita. Naturalmente, quando crescemos, estamos mais expostos a outros indicadores financeiros com que temos que lidar, ou diretamente ou então contratando um contabilista que nos alivia dessa tortura que é perceber o cálculo dos impostos, retenções na fonte, declaração de rendimentos, IVA, IRS, IRC e formas mais ou menos legais de ir declarando o mínimo possível em cada um deles, porque o português adora estas merdas. Depois compramos carro e casa e aparecem os seguros, os spreads, a Euribor, o IMI, as deduções de mais valias, os capitais próprios, o imposto de selo e o IMT, os juros moratórios e os juros remuneratórios, a TAN, a TANB, a TAER e mais um milhão de siglas que fazem pouco sentido nas primeiras 100 vezes que as ouvimos.
Quem souber interpretar tudo o que envolva estes aspetos (salário, impostos e créditos) já é valente porque os detalhes são imensos e só isso já vale o meu respeito. Mas isso, em 2024, não chega. E não chega porquê? Porque temos que ser todos empreendedores e investidores para não morrermos na miséria. Ou, como gostam de chamar os vendedores de banha da cobra, para termos a tão ansiada liberdade financeira.
Uma nota prévia: é sabido que Portugal é um país onde não abunda a literacia financeira. Tudo certo, embora ela não seja tão má como se apregoa, como mostra o estudo de 2023 promovido pela INFE/OCDE, onde Portugal aparece no 13º lugar e dentro da média dos países da OCDE (63 pontos em 100). Não é tão má assim, mas poderia ser muito melhor, é verdade. Mas o que faz comichão a muita gente é que o perfil do português seja bastante conservador e que, em geral, não se preocupe muito em investir nem em diversificar as poupanças, optando por produtos de baixo ou nulo risco. Talvez – e isto é uma novidade em primeira mão – porque a larga maioria da população não tem muitas poupanças e tem medo de perdê-las por causa de esquemas bancários pouco claros.
Se, por um lado, é importante todos termos a noção básica que existe uma coisa chamada inflação (e deflação, já agora), que torna o dinheiro mais caro ou mais barato, fazendo com que, mantendo o mesmo rendimento, o nosso poder de compra possa variar, na maior parte das vezes para baixo, e que, portanto, é importante tentar investir algum porque em contas à ordem ele vai desvalorizar, também é bom ter presente que os salários deveriam subir na proporção da inflação e, se possível, superá-la. Quando isso não acontece, o ónus fica todo do lado dos trabalhadores, quando muitos deles mal conseguem ter dinheiro para pagar as contas.
Uma das tendências nos últimos anos no Youtube português são os canais de literacia financeira, criados por jovens que não são mais do que life coaches a promoverem esquemas em pirâmide. Outros mascaram dicas para uma melhor sustentabilidade individual com a promoção de aplicações ou produtos em que eles tenham uma participação. Só uma ínfima parte destes youtubers são úteis para a melhoria da literacia financeira em Portugal, dando dicas sustentadas e realistas que de outra forma seriam de difícil acesso. Mas quase todos têm em comum um pensamento muito pernicioso: só não fica rico que não quer. Um pouco à semelhança dos life coaches mais tradicionais, que pregam a mensagem que o sucesso pessoal depende única e exclusivamente do pensamento e das ações de cada um. Acho que dizer isto em voz alta devia dar direito a pena de prisão ou, em alternativa, a viver durante 6 meses num bairro social com uma família problemática e com poucos rendimentos, para ver se não mudavam de ideias.
Não, para ser rico ou, no mínimo, para se ter uma boa almofada financeira não basta querer e não basta começar a seguir os conselhos destes pequenos duendes do século XXI. É por essa razão que eu vejo um ponto bastante válido na publicação polémica do Bloco de Esquerda sobre o assunto onde, entre outras coisas, diz isto que está abaixo.
Acho que já justifiquei acima, mas num país em que quase 840 mil pessoas recebem o salário mínimo (mais de 20% do total) e em que dois terços da população recebe menos de mil euros, é um pouco absurdo e até quase criminoso que se peça a essas mesmas pessoas que conheçam termos como diversificação, dividendos, hedge, stock picking, stop loss ou day trade. Porque é só isso que se ouve quando pesquisamos por um vídeo ou por um podcast sobre o tema. É juro composto para aqui, é criptomoedas para ali. São fundos, são ETFs, são ações, PPRs, são títulos do tesouro e ações. E mesmo para quem está minimamente informado é quase impossível acompanhar todas as tendências e fazer a comparação (ou benchmark, como estes meninos gostam de chamar) entre as melhores opções. Às vezes pergunto-me se quem está sempre de olho em análises de investimento faz mais alguma coisa na vida para além disso.
Acho que falta literacia financeira à maioria dos portugueses, como falta também uma literacia cultural, mas isso não se resolve a impingir livros do Alexandre Herculano nem a dizer que quem não souber recitar o nono canto dos Lusíadas vai morrer ignorante. Parece que é só isso que estão a querer fazer. Ou antes, parece que há um aproveitamento da ignorância da maioria das pessoas por um pequeno grupo que quer enriquecer às custas dessa mesma ignorância. Charlatões há em todo o lado e em todas as áreas (outra cheia de mitos infundados é a nutrição), mas a financeira é mesmo a tendência deste e dos próximos anos. E tal como uma pessoa para emagrecer não tem que comer só duas peças de fruta por dia e só sopa ao jantar, para atingir o tão desejado F.I.R.E. aos 50 não é preciso passar fome ou nunca mais jantar fora (e há alguns que optam por este estilo de vida extremo porque são aconselhados a isso, desgraçados). Ou antes, pode nem ser suficiente, porque a maioria das pessoas nunca vai conseguir fundos que lhes permita reformar-se aos 50, contrariamente ao que é dito pelos gurus, nem que deixe de ir ao restaurante. Simplesmente não é possível.
Onde o Bloco faz merda – e tem sempre que fazer em algum momento – é quando diz que “altos níveis de “literacia financeira” tendem a corresponder a decisões financeiras irresponsáveis”. Claro que ali as aspas são importantes para o contexto de o que é que é enquadrado em “literacia financeira” e, para o Bloco, esta definição entre aspas é a que se aproxima de uma ideologia neoliberal. De qualquer forma, a frase como está não faz qualquer sentido porque, obviamente, pessoas informadas tomam melhores decisões.
No fundo, vejo aqui um ponto bastante válido e que é algo que também me preocupa. Mas a mensagem foi quase vandalizada pelo que foi escrito a seguir. Se fosse eu a comunicar diria algo do género:
Malta, percebo que a nossa literacia financeira não é das mais altas e uma das nossas prioridades é ajudar a encontrar estratégias que resolvam esse problema. É notório que o perfil investidor do comum português é ultraconservador, quer seja pelo próprio perfil da pessoa, quer seja por desconhecimento de outros produtos financeiros. Por outro lado um enorme fator que potencia estes comportamentos é o facto de os salários em Portugal serem muito baixos e de a maioria das pessoas não conseguirem poupar e o pouco que poupam não o querem perder de maneira nenhuma. E esse é todo um outro problema, que temos também que endereçar. De qualquer forma, a educação é sempre necessária e estaremos cá para isso, até para evitar que uma quantidade enorme de vigaristas cheios de más intenções propagandeiem teorias e conceitos totalmente deturpados.
Tinha sido bem melhor assim. Acho eu.
* Roubei o subtítulo a esta crónica. Não é hábito fazê-lo, mas esse título espelha na perfeição a ideia que queria passar.
Recomendações do mês
Por falar em dinheiro, capitalismo e especulação: esta extensa reportagem Exclusive: How Elizabeth Holmes’s House of Cards Came Tumbling Down já é antiga, sobre uma história ainda mais antiga, que tem tanto de chocante como de previsível, com o aparecimento de um génio precoce (que idolatrava o Steve Jobs e lhe copiava todos os comportamentos), mas que quando se foi a ver melhor não passava de uma impostora. Muita gente sabia do embuste, mas ninguém ligou grande coisa. Enquanto isso a Elizabeth Holmes era aclamada em Sillicon Valley. Isto faz lembrar uma empresa portuguesa que está neste momento em apuros porque foi avaliada em biliões, não dá lucro e ninguém sabe bem em que é que se diferencia, não faz?
Outra história incrível, ao estilo da contada pelo Werner Herzog no Crespúsculo do Mundo, sobre Hiroo Onoda, o soldado japonês que não sabia que a Segunda Guerra tinha acabado e que, portanto, ficou a combater na selva um inimigo imaginário durante 30 anos. Nesta For 40 Years, This Russian Family Was Cut Off From All Human Contact, Unaware of World War II, é contada a história de uma família russa de 6 pessoas, que foi encontrada na Sibéria a mais de 200 quilómetros do mais próximo resquício de civilização, em 1978, para onde fugiram em 1936 de perseguições comunistas.
How We Judge Others Is How We Judge Ourselves, do Mark Manson. À partida teria tudo para ser mais um texto de autoajuda barata, mas tem uma perspetiva muito interessante sobre a forma como percecionamos todas as ações dos outros com base no que nós idealizamos para nós próprios. Este é um exemplo:
“I once knew a guy who made a lot of money. He saw the world as a series of value propositions. Everything from what holiday vacation to take, to which beer to choose at a restaurant, to why certain people liked him or not.
If someone was rude to him it was because they were jealous or felt threatened by his power or success. If someone was kind to him it was because they admired his power and success, and in some cases, may be trying to manipulate him to get more access to it.
He measured himself through his financial success. And naturally he measured the world and the people around him through financial success”.Este mês de Janeiro na NBA: os 62 pontos do KAT e do Booker, os 70 do Embiid, os 73 do Luka (com eficácia de 76%), a lista de 41 jogadores pré-convocados pelos EUA para o próximo Mundial, onde estão só todos os melhores jogadores americanos, e este final de jogo entre os Lakers e os Warriors. Belo mês.
Estas batatas fritas do Lidl. Acabaram passados 10 minutos. Palmas para quem pensou nesta combinação!
Em mês de Emmys, vale sempre a pena recordar este escândalo.
Estreia auspiciosa do Dwyane Wade nos podcasts:
Foi carisma que pediram?
Playlist do mês
August 19 (High School, 2023)
Heading For The Door (Royel Otis, 2023)
Night Of The Hunter (The Libertines, 2023)
Knockin (MJ Lenderman, 2023)
On the Avalon Stairs - Live (Fruit Bats, 2024)
Tarkovski (BODEGA, 2024)
Starting and Staring (Gustaf, 2024)
I Just Want To Wake Up With You (Helado Negro, 2024)
Idle Hands (Slow Hollows, 2024)
Void (Ty Segall, 2024)
Peace Sign (Ride, 2024)
for yr love (Snõõper, 2024)
Sugar Town (ShitKid, 2023)
Doused (DIIV, 2012)
Pelican Canyon (Du Blonde, Samuel T. Herring, 2023)
A lista completa pode ser ouvida aqui.
Um abraço.