#13: Novembro de 2023
E aquela vez em que o van Gogh fez um detox de redes sociais depois de ser traído pela mulher?
Olá,
Nos últimos meses tenho tentado fazer uma desintoxicação de redes sociais, embora nem sempre bem sucedida. É difícil, mas tento. Há algumas possibilidades mais imediatas para obrigar o corpo a fazer algo repetitivo quando está entediado – o que, na prática, é sempre a causa que me leva a fazer scroll nas redes sociais, exceto uma vez por dia, geralmente à noite, porque aí sim vou ver com interesse as novidades. Diz-se que o aborrecimento é bom porque é daí que surgem os picos criativos mais notórios (e notáveis), mas acho que combater esse mesmo aborrecimento é igualmente importante, quanto mais não seja porque com todos os estímulos que temos hoje em dia é muito complicado não fazê-lo. Uma coisa era o Van Gogh estar entediado, a meio do século XIX, sem streaming de música ou cinema, sem internet e sem desporto para ver. Não havia muitos museus nem a quantidade absurda de cafés com esplanada que há hoje. Morreu com 37 anos, tendo deixado pelo menos 2 mil quadros pintados por si e tendo vivido em várias cidades da Holanda, Bélgica, Inglaterra e França, para além de ter tido tempo de travar amizades profundas com outros génios, como o Gauguin. Enfim, dava para tudo. Alguma vez o Da Vinci – discutível mas quase consensualmente considerado o maior génio da História –, se teria dedicado a áreas tão diversas como a pintura, a música, a botânica, a arquitetura ou a matemática (só para dizer algumas) se vivesse hoje em dia? Duvido seriamente. Embora também não o imagine a ter conta no Instagram ou no Pinterest, que usaria nos seus momentos de pausa, estendido numa chaise longue lá de casa ou sentado na sua sanita.

De entre as possibilidades para substituir a reação imediata de pegar no telemóvel e abrir as mesmas aplicações do costume, uma afigurou-se-me suficientemente boa: o bom e velho Reddit. É quase uma troca por troca, saindo para os balneários uma consulta rápida de fotos e vídeos e entrando em campo outra consulta rápida, mas de opiniões. Já não seria tão natural substituir o Instagram por um livro ou um jornal, porque são coisas mais demoradas, não são, de todo, equivalentes. Parecido seria trocar pela leitura de notícias rápidas, mas isso já o faço noutras alturas do dia. Portanto, é isso, voltei ao Reddit, um sítio giro, que podemos moldar à nossa medida – lá está, sobretudo para formarmos a nossa bolha, que nos torna estupidamente pouco conscientes acerca de uma amostra mais geral, mas que às vezes é necessária, ao blindar-nos de opiniões de merda e que dispensamos ler –, com tópicos de todo o tipo, para cada estado de espírito. Sendo quase uma montra dos nossos interesses, caso não queiramos não somos expostos à toxicidade que povoa o Twitter, por exemplo.
Na semana passada estava a ler um dos dezenas de posts semanais sobre o drama das relações e o seu término – é uma praga, na verdade – e houve um comentário que me saltou à vista. O texto versava sobre uma traição numa relação de 10 anos e com uma filha pelo meio. Depois de 1 ano em que a relação já mostrava sinais de desgaste, por uma série de motivos o marido começou a desconfiar de uma traição por parte da mulher, que veio a confirmar acedendo ao telemóvel dela, sem que ela o saiba ainda (pelo menos no momento em que o texto foi escrito). A traição em causa ocorreu da forma mais clássica, até por ser com um colega de trabalho dela, também ele casado e pai de duas crianças.
Este enredo levantaria questões interessantes no que concerne à moral humana, não só, obviamente, pela traição em si, mas olhando da perspetiva do homem traído podemos pensar se ele deveria ter acedido ao telemóvel dela sem autorização e, já agora, se deve confessá-lo ou usar essa informação num eventual processo de divórcio litigioso. Não sei, honestamente, se não iria prejudicar-se ao revelá-lo. Também podemos questionar se, num acesso de loucura, misturado com tristeza e com uma certa vontade de assumir o papel de justiceiro, tão típico nestas alturas, seria moralmente correto o homem traído contar à mulher traída do outro lado: por um lado transferiria (ou dividiria) um certo sofrimento para uma pessoa que nem conhece e que nem sabe se está psicologicamente preparada para aceitá-lo, por outro estaria a mostrar a essa mulher que a sua relação está perdida, o que poderia ajudá-la de alguma forma. Ou não, porque nunca se sabe que tipo de relação está do outro lado. No entanto, no meio de várias dezenas de comentários mais emocionais a apelar a que ele expusesse o caso à companheira o mais rápido possível – e até para mudar imediatamente a fechadura da porta – houve um, claramente mais racional, que me saltou à vista. Diz assim:
Aqui no Reddit há uma história em inglês parecida à tua. O gajo encontrou casualmente uma mensagem do messenger que a mulher sem querer tinha deixado login feito no tablet de um dos filhos. Ela escrevia as mensagens e no final da conversa apagava. O gajo começou a ficar atento e fez print de tudo. O casal traidor resolveu fazer uma escapadinha e foi nessa altura que ele avançou. Contactou um advogado, abriu uma conta no banco só para ele onde colocou metade do dinheiro que estava na conta conjunta, preparou um acordo amigável com a advogada e no dia foi ao Hotel e pediu para ligar para o quarto das criaturas. Atendeu o gajo que se fez de desentendido. Quando o fulano lhe disse que a mulher dele tinha 5 minutos para descer ou a próxima ligação era à mulher do gajo lá desceu a fulana a com desculpas a tentar engonhar. O gajo entrega-lhe o molho de folhas com print de todas as mensagens e os papeis do divórcio. Ficou com a casa, com as crianças, entretanto para passar mais tempo com os filhos passou a trabalhar em part-time e ainda pediu pensão de alimentos.
Para além de ter gostado de imaginar a situação, posicionando-me como um espectador de um filme – e isto seria uma cena ótima de filme –, fiquei a pensar no que levaria uma pessoa, confrontada com um desgosto imensurável, em vez de agir emocionalmente como a maioria das pessoas, a pensar em tudo ao mais ínfimo pormenor, calculando bem cada passo que iria dar. Será que assistiu a casos semelhantes e percebeu as consequências negativas para quem agiu de cabeça quente? Será que já viu muitos filmes, do género dos assassinos que vêm true crime e depois tornam-se melhores criminosos porque evitam os erros que a polícia mais depressa descobre? Será que é mesmo uma característica intrínseca da pessoa e ela se comporta racionalmente perante todas as adversidades que vai encontrando na vida?
Senti-me, de repente, num episódio de The Rehearsal, série do Nathan Fielder e que foi das melhores coisas que vi este ano. A série propõe-se a ajudar pessoas a terem conversas que elas julgam difíceis ou a ultrapassarem da melhor forma momentos cruciais da sua vida e para os quais possam não estar preparadas. De que forma? Ensaiando essas situações. Por exemplo, eu quero despedir alguém da minha equipa de trabalho, mas tenho apreço pessoal por aquela pessoa e, a juntar a isso, sou avesso a conversas difíceis e que possam melindrar os outros. Então, peço ajuda ao Nathan e ele, com a ajuda dos milhões da HBO, monta uma réplica perfeita do cenário que eu escolho para ter essa conversa – diria que uma sala de escritório – e traça o plano até ao mais ínfimo pormenor. Vai mais longe: recria não só o espaço da conversa, como todo o ambiente externo (pessoas em redor, temperatura, luz, etc.), para um maior realismo. Se for preciso recorre a um fluxograma representativo de todas as possibilidades que possam surgir da conversa. Situações como, no exemplo que dei, a pessoa despedida começar a chorar, atirar-me água à cara, querer bater-me, ameaçar-me, o escritório ter muito barulho de fundo e a conversa ser mais difícil por isso, alguém entrar na sala por engano num momento crucial, etc., todas elas são previstas pelo Nathan. Desta forma, quando chegarmos à prática e ao momento em que tudo acontece, tudo vai correr da melhor forma.
No primeiro episódio, a pessoa em apuros é Kor, um professor de Brooklyn e ávido participante em noites de trivia. O problema de Kor é que, quando conheceu o seu grupo dessas noites, já há muitos anos, contou uma pequena mentira e, agora, quanto mais tempo passa, mais complicado é desfazê-la. A mentira é, aparentemente, inofensiva – contou que tem Mestrado, enquanto só tinha Licenciatura, e contou-a, talvez, por uma questão de status e para não se sentir inferiorizado em relação aos outros – mas sente que não consegue aguentá-la por muito mais tempo, principalmente da sua melhor amiga no grupo, Tricia. A ideia é que a revelação aconteça no bar preferido de Kor e, para os ensaios, o Nathan recriou o bar na perfeição, exatamente com as mesmas mesas e cadeiras, com as mesmas pessoas e ambiente, e contratou uma atriz para imitar os maneirismos de Tricia. A partir daqui, muito pouca coisa poderia correr mal.
Nos episódios seguintes a história central é a de uma mulher que quer ser mãe mas não sabe exatamente se está preparada para tal, pelo que o Nathan contrata uma série de crianças para, à vez, fazerem o papel de filhos dela – pela lei, uma criança não pode trabalhar mais do que x horas seguidas, daí a necessidade de juntar várias crianças, para além de terem idades diferentes, de forma a simular artificialmente o natural passar dos anos. Diria que este será um dilema válido e para o qual muita gente não desdenharia ajuda.
As camadas satíricas e irónicas de cada episódio são imensas e, invariavelmente, o Nathan Fielder acaba por perceber que aquelas histórias servem também para ajudá-lo a ele próprio a afugentar os seus demónios. Para além de original – não é tão distópica como Severance, mas é bem mais interessante –, está muito bem feita e tem aplicações na vida real ou, pelo menos, faz-me pensar em associações aos problemas mais mundanos. O facto de nunca sabermos bem o que é ficção ou não – as pessoas na série são comuns, não são atores, ao estilo do que fazem o Sasha Baron Cohen, o Eric Andre, o John Wilson ou o Larry David – é sempre um plus. Muito mais teria a dizer sobre esta série, mas o melhor que posso fazer é recomendá-la, vale mesmo a pena.
Dificilmente poderemos pensar que ações ensaiadas terão pior resultado do que ações por impulso. Não falo, obviamente, de algumas formas artísticas onde o improviso é parte importante do resultado final, mas deste tipo de dilemas do quotidiano que vamos enfrentando. Acredito mesmo que se pensarmos em todas as variáveis possíveis – e haverá sempre uma ou outra que escapa – teremos sempre um maior controlo das reações dos outros e, com isso, conseguimos prever melhor o nosso próximo passo.
Aplicando esta teoria a casos concretos recentes, não deixo de pensar que se a Procuradora-Geral da República tivesse pensado nas coisas como deve ser talvez não tivesse redigido o comunicado da forma como o fez (esta parece-me óbvia) e talvez também tivesse tido outra sensibilidade (já nem falo humana, mas política) para perceber o impacto que aquilo ia ter. Ela claramente não o previu porque possivelmente não ensaiou suficientemente bem o que iria fazer.

Tenho também a convicção de que se o Pinto da Costa tivesse pensado nas consequências dos acontecimentos da Assembleia Geral de dia 13 teria agido de outra forma, ou não encorajando a claque previamente (coisa que acredito piamente que terá feito) ou, perante a confrontação com aquela inevitabilidade, não teria ficado quieto e calado enquanto tudo acontecia. Não pensou que os sócios se fossem unir contra um ato criminoso, assistiu impávido e sereno e, com isso, poderá ter perdido as eleições. Ou também o caso do desaparecimento da grávida na Murtosa, que parece ter sido obra do amante: será que se ele tivesse pensado em tudo o que lhe poderia acontecer teria feito o que, aparentemente, fez? Pelos vistos é adepto de true crime porque fez algumas habilidades para despistar a Polícia, mas estou certo de que não foi suficiente, tanto é que está detido. Caso o crime tenha sido, de facto, cometido por ele sob o pretexto de uma paternidade indesejada, o Nathan Fielder teria conduzido a sua experiência no sentido de ajudá-lo a ter uma conversa franca com a amante, mas que terminasse de forma diferente daquela que aconteceu.
Admito que a ultra-racionalidade (não sei se o termo existe) possa tirar um bocado de piada à nossa existência, mas em algumas situações recomenda-se. Será que a vida não seria mais fácil se pudéssemos ensaiar tudo antes de vivê-la?
Recomendações do mês
The Mystery of the Bloomfield Bridge, dos melhores textos que li ultimamente, muito bem escrito. Tyler Vigen, um gajo random, passa muitas vezes de carro numa autoestrada e, por consequência, debaixo de uma ponte pedonal que a atravessa. Curioso, um dia foi tentar perceber a razão daquela ponte ter sido construída, porque aparentemente não liga a nenhum ponto de interesse. O que se segue é uma das investigações mais obsessivas e meticulosas que possam imaginar. A certa altura perguntei-me porque raio este gajo está a perder dois meses de vida com isto? Ele também responde a isso.
On the importance of staring directly into the sun, um texto longo sobre não sabermos nada sobre coisas que achamos que sabemos tudo. Ou, traduzindo para linguagem científica, “illusion of explanatory depth”. Muito interessante.
Emotions: A Code Book, com um resumo útil que nos explica que mensagem está escondida atrás de cada emoção. Por exemplo esta: “Boredom—a call to do something I am avoiding”.
Humans have been predicting eclipses for thousands of years, but it’s harder than you might think. Aparentemente isto é uma arte bem mais difícil do que parece. A culpa? A imprevisibilidade dos movimentos da Lua.
Confessions of a Middle-Class Founder During the boom times, I launched a start-up so I could become rich. Years later, I’m still looking for my exit, sobre as ilusões e desilusões do mundo capitalista.
”The first year or so was a constant swing between the radiant high of making customers happy and the comedown of watching our jerry-rigged product disappoint them. I learned most customers are indifferent as long as the job gets done, about 20 percent are discerning but reasonable, and 3 percent will drive you nuts (no amount of support will satisfy them because the product they really need is therapy)”.
”Start-ups are like sharks: They need movement to survive. But movement implies change, change implies volatility, and volatility implies fluctuations between good and bad. To succeed, you need to average more good days than bad, but bad days are impossible to avoid. And more than any other trait, good founders are defined by an obsession with doing things right; it was inevitable that my self-worth would become entangled with the performance of the business”.The Death of a Public Intellectual. Sobre como facilmente ficamos fascinados e nos tornamos obsessivos com os intelectuais que povoam o Youtube hoje em dia. Revi-me.
Can I Skip My 100-Year-Old Father’s Wedding? He’s Making a Big Mistake. Dilema tragicamente cómico de um filho preocupado com o pai de 100 anos casar com uma caça fortunas.
Soube da existência do Snackverse recentemente e fiquei com vontade de experimentar. Pela amostra dos snacks de Portugal, parece-me que é bastante fiável.
Rogério Casanova, uma das pessoas mais fascinantes deste nosso Portugal, pelo Guilherme Geirinhas.
Alex Turner. Ou como diz um comentário ao vídeo:
“Before he was more euphoric. Now he is calmer. Maybe he sings according to how he feels”.
Playlist do mês
Missus Morality (bar italia, 2023)
Bite My Head Off (The Rolling Stones, 2023)
Love And Tenderness (The Kills, 2023)
Mistakes (Harpool, 2019)
Abandon Ship - Martian Meltdown Mix (The Brian Jonestown Massacre, 2023)
Ter Peito e Espaço (Sara Tavares, 2023)
Pacing Like a Lion (Color Palette, 2023)
No One's Dreaming (Husbands, 2018)
New York (JW Francis, 2020)
Beaufort (WYFE, 2023)
LADY (goodkidvik, 2023)
Finley (Leopard Tuesday, 2022)
Now and Then (The Beatles, 2023)
Good Times (Dreams on Tape, 2022)
Concrete (Black Haus, 2022)
A lista completa pode ser ouvida aqui.
Um abraço.